O nascimento da dignidade - Vamos pensar sobre o Aborto?
Vamos nos colocar na seguinte situação: você vai a um hospital visitar uma amiga. Atravessa o saguão de entrada e entra no elevador. Como você não sabe mais com certeza qual é o andar onde sua amiga está internada, acaba apertando o botão errado. Ao descer, entra em um setor onde doadores voluntários são ligados a pacientes que não conseguiriam sobreviver sem ajuda externa. Contudo você não percebe a situação. Depois de ficar algum tempo na sala de espera, você é chamada e um médico lhe aplica uma injeção anestésica. Ao acordar, você esta num leito e, ao seu lado, um homem inconsciente ao qual você está ligada por meio de complicados aparelhos. Você chama o médico e alguém lhe diz que o homem ao lado é um famoso violinista com uma doença renal. Ele só sobreviverá se sua circulação fosse ligada ao sistema circulatório de alguma outra pessoa do mesmo grupo sanguíneo, e você é a única pessoa que preenche esse requisito. Como se trata de um hospital renomado, o mal-entendido é profundamente lamentado. Tudo levava a crer que você tivesse se colocado à disposição voluntariamente. Você pode ser desacoplada do violinista, mas ele vai morrer. Entretanto, se você concordar em ficar nove meses ligada ao homem, a cura dele está garantida. E você será liberada a seguir, sem que a vida dele seja posta em risco. Você faria isso?
Uma história bastante desagradável,
você vai dizer, se parece mais com um pesadelo, e não com um fato baseado na
vida real. Qual visitante de hospital aceitaria receber uma injeção anestésica
sem mais nem menos? É claro que você tem razão, mas, como sempre acontece
nesses dilemas morais apresentados pelos psicólogos e filósofos, não se trata
aqui do detalhe, e sim do principio. A história, um pouco modificada, é de
autoria de Judith Thomson, professora de filosofia no famoso Instituto de
Tecnologia de Massachusetts. E a resposta é a seguinte: é muito simpático da
sua parte dispor de seus rins por nove meses para uso conjunto com o
violinista, permanecendo por todo esse tempo na cama, mas você não está de modo
algum moralmente obrigada a fazê-lo! Como você deve ter imaginado ao ler o
título deste capítulo, esse exemplo não é sobre violinistas fictícios, mas
ilustra um fato geral: você foi colocado – de modo indesejado, não planejado e
talvez até um pouco violento – numa situação em que a vida de um outro ser é de
sua inteira responsabilidade. E casos assim se repetem muito mais vezes não com
violinistas doentes renais, porém com gestações inesperadas.
Uma mulher que fica grávida sem o
desejar, segundo Thomson, está numa situação muito semelhante aquela da ligação
involuntária com o violinista. E, da mesma maneira como você não está obrigada
a assumir a responsabilidade pela vida do violinista, a mulher também não o
está em relação ao embrião que cresce dentro dela não-intencionalmente. Na
opinião de Thomson, o direito à livre escolha da mulher tem mais peso do que a
obrigação assumida de modo forçado em relação à outra vida.
Esse argumento se tornou muito
popular. O slogan do feminismo, “a
barriga é minha”, foi inspirado nele. Mas, ainda que ratifiquemos essa frase, a
argumentação de Thomson permanece bastante duvidosa. Imaginemos uma pessoa
esfomeada, que usa suas últimas forças para bater à nossa porta e mendigar
comida. Inspirado em Thomson, poderíamos dizer: é muito simpático de nossa
parte dar-lhe alguma coisa. No entanto não estamos de modo algum obrigados a
assumir a responsabilidade pelo esfomeado nessa situação que não escolhemos.
Nem todas as pessoas concordariam com isso. E há leis, muito cabíveis, que
tratam da “omissão de socorro”. O fato de uma situação não ter sido desejada
por nós e de não querermos assumi-la não é, a
princípios, uma objeção a assumir a responsabilidade. Precisamos considerar
caso a caso.
O dilema com o violinista leva a um
beco sem saída, pois ele não coloca um princípio realmente convincente. A
grande falha do exemplo é um detalhe básico: o violinista é um ser adulto com
todas as suas capacidades psíquicas e mentais. Mas o que dizer do embrião e do
feto? Será que eles têm o direito incondicional e inalienável à vida? No estado
atual das coisas, temos para responder a essa pergunta três caminhos à
disposição. O conceito de Kant de “dignidade humana”, o “utilitarismo” de
Bentham e o “sentido moral” intuitivo de Hauser.
Comecemos com Kant. Encontramos uma
frase sobre embriões em apenas um único trecho de sua obra. Trata-se,
essencialmente, de direito conjugal. Também o embrião, escreve Kant, é um ser
equipado com toda a dignidade humana. Se não fosse assim, estaríamos diante do
problema de determinar o momento em que a liberdade e a dignidade humana
começam no útero materno. A natureza, segundo Kant, não tem a consciência de si
mesma e, por isso, não conhece a liberdade. Como e quando o ser humano é dotado
de liberdade e, como ela, de dignidade? Hoje a resposta de Kant só pode ser
compreendida em seu contexto temporal: a liberdade do embrião se apoia na
liberdade dos pais, uma vez que estes o geraram de maneira voluntária, e numa
ligação livre – o casamento! O fruto dessa união livre é um embrião livre.
Por outro lado, isso também
significa que somente os embriões gerados de modo voluntário e dentro do
casamento são seres livres e dotados integralmente da dignidade humana. Os
outros não o são. Como essa definição, atualmente um tanto estranha, Kant
reagiu a um problema do seu tempo.
Em 1780, o conselheiro de Estado
Adrian von Lamezan premiaria com cem ducados a melhor resposta à questão:
“Quais são os melhores meios existentes para refrear os assassinatos de
crianças?”. A repercussão do concurso, com mais de quatrocentas participações,
foi estrondosa, pois aborto e assassinatos de recém-nascidos eram praticas
comuns no século XVIII. Na maior parte das vezes, o motivo disso eram relações
sexuais de senhores com suas empregadas. O problema era premente, uma vez que o
assassinato de recém-nascidos fora do casamento era tabu, embora largamente
corriqueiro. Num outro trecho de seus escritos sobre direito, Kant demonstra
uma certa compreensão no tocante ao assassinato de crianças. Omo o
recém-nascido bastardo não era totalmente livre, mas “introduzido de modo
furtivo (como mercadoria proibida)” no ventre da mãe, o filósofo equivale o
infanticídio a outros “delitos de cavalheiros”, como a morte num duelo, e
defende circunstancias atenuantes para o ato.
Ou seja, argumentar usando Kant
hoje em dia é totalmente problemático não apenas porque há embriões gerados no
casamento de modo involuntário e embriões gerados fora do casamento de modo
voluntário. A questão é que, assim como Kant, sem o casamento não se pode
provar de onde vem a dignidade humana do embrião no ventre materno, ele também
não pode condenar a matança de crianças nascidas fora do casamento. Sim, de
determinado modo, nem mesmo a morte de adultos gerados fora do casamento! Os
motivos que Kant apresenta para a imprescindível necessidade de proteção do
embrião (gerado dentro do casamento) são, sob o ponto de vista atual,
totalmente despropositados. E é certo que ninguém que se apoia em Kant na
presente discussão sobre o aborto concorda com seu corolário de julgar de modo
diferente embriões recém-nascidos fora do casamento daqueles gerados dentro do
casamento. Entretanto, se não queremos aceitar essa conclusão, por que ainda
damos importância à argumentação de Kant sobre a dignidade humana do embrião
(gerado dentro do casamento)? Ela está simplesmente ultrapassada e só pode ser
compreendida num contexto histórico.
Chegamos assim ao segundo caminhos,
o utilitarismo. Como utilitarista coloco duas perguntas. Primeira: quanto um
embrião ou feto é capaz de ser feliz ou de sofrer? Segunda: O que pesa mais, a
felicidade e o sofrimento da criança no útero da mãe ou a felicidade e o
sofrimento da mãe?
Para responder a essas perguntas,
precisamos chegar a um acordo sobre o valor de um embrião. Nenhum utilitarista
divide a opinião de Kant de que o valor da vida do embrião depende do livre
casamento dos pais. Será que o embrião ainda é uma pessoa a ser
imprescindivelmente protegida? Não, é a resposta. O embrião é um ser humano na
medida em que ele pertence à espécie Homo
sapiens. Mas ele não é uma pessoa no sentido moral integral, ou seja, não é
uma pessoa. O que são pessoas então? Como consigo reconhece-las? A noção do que
se entende por pessoa não é do próprio Bentham. Para ele, a melhor ação moral
era a que gerasse a maior felicidade possível para o maior número possível de
seres humanos. Não se fala em pessoas. Seus sucessores descobriram aí dois
pontos fracos, e tentaram saná-los.
O começo foi a pergunta: o que devo
entender por felicidade? Para Bentham, felicidade era a vivencia do prazer em
seu sentido mais amplo. Seu aluno mais famoso, porém, o filósofo e político
liberal John Stuart Mill, estava insatisfeito com isso. Ele queria libertar o
utilitarismo da suspeita de que sua noção de felicidade era sem graça e
apática. Por isso ele colocou as alegrias espirituais acima das corporais:
“Melhor um Sócrates insatisfeito do que um porco feliz”. Mas, se o espírito
deve ser colocado acima da felicidade meramente corporal, então o ser humano
adulto, ricamente dotado de espirito, é algo mais valioso do que, por exemplo,
um recém-nascido ou um cavalo? Sendo assim, apenas um ser humano complexo seria
uma “pessoa”.
Uma geração posterior de
utilitaristas incorporou essa abordagem à teoria. Ela englobava não apenas os
desejos elementares de seres vivos, mas colocava muito acima as complexas
noções humanas de desejo; tão acima
que elas tinham de ser impreterivelmente levadas
em consideração. Chamamos essa vertente de utilitarismo
preferencial, à qual se alinham quase todos os seguidores modernos de
Bentham. Para utilitaristas que levam em consideração as preferências altamente
desenvolvidas (desejos e objetivos), ninguém pode matar uma pessoa, pelo menos
não enquanto ela mantiver seu desejo expresso de continuar viva.
Embriões, ao contrário, não têm
objetivos e desejos complexos, eles supostamente têm um instinto de querer
permanecer vivos, mas isso não os diferencia de salamandras. Para os
utilitaristas preferenciais não há nada que proíba a morte deles. É certo que
os fetos, a partir de determinado grau de desenvolvimento, têm uma consciência,
assim como de modo semelhante também os porcos e bois, que, apesar disso,
matamos para comer. Mas não há nos fetos uma autoconsciência no sentido de
objetivos e desejos complexos. Por isso, estaria valendo a máxima: um feto pode
ser morto, a princípio, em qualquer nível de seu desenvolvimento – ao menos
quando isso minorar de modo decisivo o sofrimento da mãe ou aumentar de maneira
significativa sua felicidade.
Assim é o utilitarismo. Sem dúvida
essa argumentação é mais clara do que considerar a imperiosa dignidade humana
de Kant para fetos gerados no casamento. Todavia, essa posição também tem
pontos fracos. Alguns poderiam retrucar que o embrião se movimenta
espiritualmente no nível de uma salamandra, mas nele há o potencial de um
Albert Einstein. Se ele não fosse abortado, seria em algum momento um ser
humano dotado de desejos e objetivos. Não seria, portanto, uma pessoa em potencial? Isso é verdade. Mas o
argumento não é tão convincente como parece à primeira vista. A potencialidade,
de modo geral, não é um critério de valor moral. Quem sacraliza a vida humana
potencial tem de seguir o julgamento da igreja católica a respeito do
autoprazer e da anticoncepção (mesmo que a igreja tenha assumido essa posição
há apenas 140 anos). A diferença fica ainda mais clara com um exemplo: você
realmente acha a mesma coisa jogar uma galinha viva ou um ovo numa panela com
agua fervente? A potencialidade não diz nada sobre uma percepção atual de
felicidade ou dor; ela não gera nenhum estado de consciência. Dessa maneira,
não é um critério verdadeiro no âmbito das questões da moral.
Porém há outras restrições. Uma
grande falha do utilitarismo é sua avaliação das consequências, pois, para se
chegar a uma ponderação sensata entre felicidade e sofrimento, preciso conhecer
e levar em consideração as consequências de minha decisão. Só que isso não é
nada fácil. As vezes mesmo em simples questões particulares tenho dificuldade
em saber o que é melhor (para mim): vou hoje à noite à festa de aniversário de
um amigo ou assisto a uma das poucas leituras públicas que meu autor predileto
costuma fazer? Como vou saber o que, no fim das contas, vai me trazer mais
felicidade? Como é muito mais complexo ter em mente situações morais e toda sua
complexa rede de consequências! Quem sabe se uma mulher que aborta não vai se
arrepender depois? Será que acabará se sentindo psiquicamente mais abalada do
que ela própria supunha? E o que o reprodutor masculino tem a dizer a respeito?
Será que esse passo não acabará afetando demais a relação? Esse é o risco da
vida, responderia um utilitarista. Em nenhum caso, porém, é um argumento para
uma proibição geral ao aborto.
Dessa maneira, a restrição mais
forte contra a argumentação utilitarista é outra. Se é verdade que ao feto não
pode ser atribuída nenhuma proteção absoluta porque ele não tem objetivos e
desejos complexos, e por isso não é uma pessoa, o mesmo não valeria também para
um recém-nascido? Um bebê só se torna uma pessoa consciente e livre em algum
momento entre os 2 e 3 anos. Será que o utilitarismo de preferência não está
jogando a criança com a água do banho e permitindo, ao lado do aborto, também o
infanticídio até os 3 anos de idade?
Essa objeção é muito importante. Na
realidade, há utilitaristas de preferencia para os quais o valor incondicional
da vida de uma criança pequena só começa a partir do segundo ano de vida. Eles
não estão dizendo que autorizam a morte de crianças até esse limite sem um
motivo sério. Mas os motivos para tanto não estão num valor que a pessoa coloca
para si própria – eles estão nas consequências sociais. Crianças pequenas quase
sempre são muito valiosas para os pais e familiares. E mesmo aquelas que não o
são, por exemplo, porque vivem em orfanatos, tem pelo menos o direito da proteção da sociedade. Contudo não é
fácil para um utilitarista de preferencia dizer por que essa proteção tem de
ser maior do que proteção aos animais. Podemos dizer, em ambas as áreas, que
uma sociedade que não cuida dos seres vivos, mas os trata de modo leviano, embrutece de maneira perigosa. No
entanto esta não é uma argumentação sólida para o direito à vida de crianças
pequenas. Esse é o calcanhar-de-aquiles do utilitarismo de preferência.
Nesse momento chegamos ao terceiro
caminho e vamos seguir as noções de Marc Hauser, de que todo ser humano teria
algo como um sentido moral, uma moral “intuitiva”. Como vimos, o utilitarismo
tem uma posição clara na questão do aborto. Mas ela gera consequências que
muitas pessoas classificariam de modo intuitivo como duvidosas, ou seja, um
déficit na proteção incondicional à vida das crianças pequenas. Quando
filósofos da moral escutam a palavra “intuição” quase sempre ficam arrepiados.
Kantianos e utilitaristas se tornam aliados em questão de segundos quando se
trata de repelir referencias a intuições: sentimentos não são confiáveis;
divergem de pessoa para pessoa; depende do humor e também culturalmente não
coincidem nos mesmos casos e questões. Por isso a filosofia ocidental tenta
justificar seus argumentos de maneira racional – ou seja, com a ajuda da razão
– e torna-los aplicáveis a todos.
Essa forte objeção ao sentimento na
filosofia da moral é uma herança da batalha entre filosofia e igreja. Para se
livrar da religião, a maioria dos filósofos saiu à procura de justificativas
racionais e de preferência não sentimentais, e definiram o ser humano com base
na inteligência e na razão. Essa imagem do ser humano é errada, como vimos na
primeira parte do livro. Corpo e mente não podem ser separados, nem o
inconsciente e o consciente. Se nossa moral ainda tem alguma relação com nossos
sentimentos, então não podemos tão somente eliminá-los. É evidente que os
sentimentos, de maneira isolada, não são um critério que traga felicidade. Mas
uma moral que abre mão de sua compatibilidade com a intuição e, desse modo, com
a base biológica do sentimento de moral certamente é pior do que uma que inclua
essa intuição.
Realmente faz sentido deixar de
lado os sentimentos, assim como no caso da resposta utilitarista para a questão
das crianças pequenas, porque eles não combinam no esquema de justificativas?
Mais ainda: faz sentido, assim como o utilitarismo, colocar o sentimento de igualdade como instancia
máxima de juízo? Tal corresponde a nossa natureza? Quando uma mulher está
diante de uma casa em chamas, na qual estão presos bebê e seu cachorro, e ela
só pode salvar um deles, será que ela por lealdade deve salvar o cachorro
(contra todo o instinto e contra todo o sentimento de amor) supostamente porque
suas preferencias estão desenvolvidas mais fortemente?
Se quisermos instituir regras de
comportamento que não sejam paradoxais, é preciso incluir a intuição. Isso vale
também para toda filosofia da moral, por mais racional e sóbria que se
apresente. Nenhuma das filosofias da moral sobrevive sem valores. E, de acordo
com sua natureza, os valores não são pensados pela razão, mas por ela sentidos.
É compreensível que eu coloque o bem-estar geral como um bem, assim como faz o
utilitarismo. Isso, entretanto, não é consequência de uma reflexão lógica, mas
um valor. Nota-se essa distinção o mais tardar quando alguém declara ser
egoísta e que o bem-estar geral não o interessa. Não posso justificar meu
interesse em outros seres humanos apenas de maneira lógica, e minha vontade de
fazer coisas boas é e continuará sendo uma decisão pessoal sobre valores. A
última base para toda regra moral é uma vontade e um querer, e não um conhecer
ou um saber.
Hoje em dia, muitos filósofos
rejeitam aludir a um sentido de moral intuitivo principalmente porque essas
referencia passa uma impressão muito religiosa. Quando a igreja católica quer
que todos os pertencentes à espécie Homo
Sapiens, a partir da junção do óvulo com o espermatozoide, estejam sob
proteção incondicional e sem exceção, ela não está se apoiando em argumentos
racionais. Ela se apóia em algo sentido, o desejo de Deus. Curiosamente, porém,
esse desejo é mutável. Foi o papa Pio IX, no ano de 1869, quem determinou que
os embriões, a partir do instante em que foram gerados, são completamente
dotados de alma. Os parâmetros anteriores para a confirmação da alma eram os
movimentos do feto, o primeiro sinal perceptível de vida. Isso também é muito
mais afim com uma percepção intuitiva, pois a vida sentida tem um outro valor
intuitivo do que aquela que existe apenas biologicamente, que muitas vezes nem
foi ou será notada. Várias mulheres não sabiam( e outras talvez ainda não
saibam) que estavam num estágio inicial de gravidez. O papa Pio IX, porém,
reagiu às novas possibilidades médicas do seu tempo. Nos anos 1860 fazia pouco
que a gravidez podia ser diagnosticada de modo confiável desde o inicio.
Arrojado e imprudente, o papa ampliou a área de poder da igreja sobre todo fruto do ventre materno.
De acordo com sua origem, a
religião é a tradução de intuições em imagens e mandamentos. Além disso, ela é
uma regulamentação da ordem social. O dogma religioso de animação precoce,
porém, vai contra toda intuição. Ele é contra-intuitivo; não traz nada de positivo
à ordem social. O significado emocional da vida humana precoce depende do valor
que a mãe e, de modo mais tênue, o pai e outros familiares lhe dão. Quanto mais
o feto se desenvolve, não raro mais intensa se torna essa ligação. Um salto
importante nesse sentido é o parto. Para o feto, é a entrada numa nova
dimensão. Ele se torna biologicamente autônomo pela primeira vez, seu ambiente
de vida modifica-se por completo e seu cérebro passa por uma revolução. Ver,
ouvir e sentir o recém-nascido também abre uma nova dimensão emocional para a
mãe e o pai, e outros familiares como irmãos ou avós. Independentemente do
quanto é estreita a ligação do feto ao ventre materno, muito poucas mulheres
diriam que, depois do parto, essa relação mantém a mesma dimensão de antes. Nossa sensibilidade moral é em larga
medida uma questão da vivência sensorial e da fantasia, atiçada pelos
sentimentos. As religiões guardam esse sentimento de “moral intuitiva”, embora
de melhor ou pior maneira.
A intuição corrige o utilitarismo
em dois pontos. Para ela, o aborto se torna cada vez mais problemático quanto
mais tarde acontece. Dessa maneira, o limite de três meses para o aborto legal
na Alemanha faz sentido. Mesmo que a mudança do 91º para o 92º dia de vida não
signifique nenhum passo numa nova dimensão, podemos dizer de modo geral que
depois de três meses alcança-se um limite natural, até onde o termo “vegetar”,
ou seja, uma vida sem consciência, tem sentido ao ser empregado. Em segundo
lugar, a intuição confere aos recém-nascidos e às crianças pequenas um direito
à vida incondicional, pois intuitivamente avaliamos sua vida como uma vida
humana equivalente. O fato de que existem pessoas sem essa intuição – ou seja,
pessoas que são moralmente alienadas – não muda nada. Toda moral tem problemas
desses naipe. Como dissemos, nem todo o mundo acha o bem comum importante;
apesar disso, os utilitaristas pressupõem tal noção; de maneira comparativa,
porém, instintos biológicos imediatos seriam ainda mais confiáveis para deles
se derivar instintos sociais.
Desse modo, o direito à vida, seu
valor e sua dignidade não começam no ato gerador. Por isso não é possível
compreender porque os embriões até o terceiro mês de gestação não podem ser
abortados. A situação é mais problemática em relação a fetos mais
desenvolvidos. Uma morte se torna, mês a mês, algo cada vez mais delicado
moralmente. Nesse caso, exceções válidas apenas confirmam a regra. Quem fica
ciente de um risco muito alto de dar à luz um bebê gravemente deficiente,
física ou mentalmente, e de cujos cuidados pai e mãe não se sentem capazes,
depois de muito pensar pode se decidir por sua morte.
A equivalência utilitarista, que
pondera os desejos, os objetivos e o sofrimento potencial dos pais em relação
aos do feto, é atroz, mas não há alternativa. A decisão se torna ainda mais
difícil depois do nascimento, quando se trata de um bebê que dormita num estado
de inconsciência mental ou que não consegue viver sem aparelhos. Um
recém-nascido com um grave defeito no coração, por exemplo, que precisaria
ficar toda sua vida ligado a uma máquina – qual outro parâmetro poderia ser
usado aqui além de os pais ponderarem suas sensações, ou seja, seu senso de
moral, e seus desejos e objetivos derivados dele, se possível com um
aconselhamento inteligente e acolhedor?
Perguntas como essas, porém, há
muito não são mais perguntas sobre o aborto, mas entram num terreno totalmente
diferente. Elas nos fazem refletir sob que circunstancia é moralmente aceitável
deixar uma pessoa morrer, ou até mesmo mata-la, seguindo a própria vontade.
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